10 de jan. de 2007

Crônica da cozinha: romance Ítalo-Finlandês


Rinaldo - cozinheiro nascido em Roma, 45, cabelo acaju com gel até as raízes, cavanhaque, corrente de ouro e camisa aberta. Como muitos por aqui, migrou por causa da patroa Finlandesa, que conheceu num cruzeiro. Já não sendo mais ela a patroa, passa o dia entre panelas, fogões e comentários indecorosos sobre as clientes do restaurante.
Yula - Repositora Finlandesa de Savonlinna, 25, branca bem branca, morena e pequena, olhos claros e baixos. Avental largo, mas que contorna. Estuda gastronomia e trabalha em uma das milhões de cozinhas industriais que servem os trabalhadores finlandeses todos os dias. Atenta a talheres, pratos e copos. E, quando estes se mostram abundantes, peitorais masculinos.
Eu - dishwasher, kitchen helper e narrador.

..................................O FLERTE


Em pé, Rinaldo e eu descascávamos ovos cozidos na bancada da cozinha. Eram 8 da manhã e o almoço estava quase pronto. A água em que os ovos foram deixados de molho no dia anterior estava morna, não quente, e por isso a casca insistia. Rinaldo queria os ovos como gosta de suas mulheres, roliços. Assim, a cada pedaço do ovo perdido na luta contra a casca, perdia-se também o ovo, que ia de uma só vez sem sal ou azeite para a boca de Rinaldo. No oitavo ovo, e com o cavanhaque amarelado pela gema, Yula passa no corredor com uma bandeja cheia de canecas brancas de plástico. Rinaldo me cutuca com o cotovelo mais ou menos na altura do baço, e diz, mais alto do que deveria:


- Una bella ragazza this gérl, hãn?


Além do fato de facilmente perder a concentração de seus afazeres gastronômicos diante de um rebolado, Rinaldo possui outras duas características marcantes: um ódio mortal da culinária finlandesa e completa falta de discrição. Minutos após termos recrutado o head chef do restaurante, Kai, para batalha dos ovos, Rinaldo, sem tirar os olhos do inimigo, diz:


-Fernaando, anyone can be a chef in Finlandê, even litou kids...Everything comes rêdy in the boxes, all that you have tu du is puti it in the oven. In Rooma, iti takes faive haours to make a pomodoro sauce...Besideses, all taste like babies food, don´t you think? That is why i always cook a litou biti for myself...


Sou salvo pela jovem Yula, de volta do salão segurando a bandeja vazia. Sem os copos, a garota tem um andar mais leve e solto. Ao passar, levanta os olhos e os aponta para nós, rapida e discretamente. Desta vez, Rinaldo acompanha de corpo inteiro o passar da moça, e termina de costas para a bancada, apoiado na sola de um pé e na ponta do outro.


-Mamma mia...beautifol...


E outro ovo vai à boca.


...................A ABORDAGEM

N do N.: (11 e meia da manhã é o inferno do dishwasher. Todos estão almoçando menos você, mas o cheiro vem. E, pra quem acordou as 5 e meia e enfrentou neve e escuridão pra chegar no trabalho, vem forte. No entanto, o mais perto que você chega de comida são os restos. Misturados com gurdanapo, prato principal com sobremesa. Sobram os restos. É quando restam apenas duas opções: ativar o modo "Nascido para lavar" ou pedir as contas. Vale tudo, raspar prato de maionese com a mão (nua, luva só tem até tamanho 7), mergulhar o braço até o cotovelo pra desentupir o ralo, sprint em chão molhado carregando pilhas de um metro de pratos, mais molhados ainda, até o carrinho e por aí vai. E foi nas exatas 11h e 37, que eu vi).

Correndo para repor os garfos que se esvaem a cada segundo, Yula carrega 3 bandejas ao mesmo tempo em direção ao salão. Mesmo visivelmente apressada, não perde sua sutileza nórdica ao andar. O movimento de seu rabo de cavalo varia dos 20ºW aos 20ºE. O encontro se dá na porta que divide a cozinha do salão, uma porta de cozinha industrial, como as de Saloon de Velho Oeste. Yula de cá. Rinaldo de lá, voltava do salão para repôr o ensopado com carne de soja. Ela chega à porta antes. Vira-se de costas para empurrá-la, pois tem as mãos ocupadas por 265 garfos limpos, secos e quentes. Vira-se pouco antes de poder notar, pela janela retangular da porta, Rinaldo vindo com uma bandeja suja e vazia na mão direita. O romano, sempre atento à tudo que possa levá-lo a lençóis alheios, puxa a porta no exato momento anterior ao toque do quadril de Yula na madeira, fazendo com que o movimento se dê no vazio. Sagaz, matreiro e imperceptível, Rinaldo substitui o branco da madeira pelo branco de seu uniforme antes que a inocente Yula se dê conta, e provoca o choque tímido, lento e quente dos quadris da repositora de talheres em seu alvo avental. A garota levanta, novamente, os olhos em direção ao cozinheiro e esboça um sorriso:


-Kiitos paljon.
-Ole hyvä, helmi...


N. do N.: Neste momento, cometo uma das falhas mais mortais do dishwashing e aponto o forte esguicho d'água para uma superfície côncava. O erro faz com que o creme do ensopado (antes condensado na concha atingida pelo esguicho) me atinja no olho, turvando a cena com pedaços de cebola, tomate e pimentão, tornando-a assim inacaba.


...................A CONSUMAÇÃO

Com o dever parcialmente cumprido, ás 13h e 30 a equipe da cozinha ataca, religiosa, pontual e unanimamente, o que a força de trabalho finlandesa os poupou. Sentados nos 4 diferentes nichos (senhoras finlandesas semi-mudas; jovens aprendizes; chefes de cozinha e imigrantes/refugiados políticos/dishwashers), todos apreciam os frutos da labuta. Desfalcado de Rinaldo, que ainda não saíra da cozinha, converso sobre futebol com Amir, o dishwasher master da Somália. Enquanto degluto a massa disforme e cheia dos temperos que coloco pra lembrar de casa, observo os finlandeses em seus hábitos alimentares. Um por um, noto as semelhanças e diferenças no passar de pão no molho, utilização de talheres e etc. Noto também que Yula não está no nicho jovens aprendizes, como de costume. Procuro-a nas senhoras, nada, nos chefes de cozinha, nada. A última mesa ocupada é a minha, por mim e Amir. E só. Do meio do salão, torço o pescoço para tentar ver o interior da cozinha por detrás do vidro esfumaçado. Nem sinal dos dois. Ao que Amir comparava o fiasco da seleção de 82 com o de 06, resolvo, já estufado pelo ensopado de carne de soja, pegar um café, preparando-me para enfrentar o que no mundo do dishwashing é considerado a subida da Brigadeiro na corrida de São Silvestre: as panelas e utensílios de cozinha. No momento em que pesco cubos de açúcar que nada adoçam para colocar no meu café que não me deixa acordado, ouço a porta de madeira se abrir, e dela vejo sair Rinaldo, olhando para um lado e andando para o outro. O cozinheiro contorna o setor de saladas, pães e chega até o café onde termino de encher minha caneca. O barulho da porta vem de novo, dessa vez mostrando Yula deixando a cozinha e já pegando uma bandeja para si, rápida. Rinaldo, segurando apenas um prato de Fettucine a Bolonhesa, sem bandeja ou bebida, se aproxima e me cutuca com o cotovelo do braço que segura 6 fatias de pão, mais ou menos na altura do baço:

- Ecco Fernando, Finnish food is not that bad.

E solta uma gargalhada italiana. Bem mais alto do que deveria.

7 comentários:

Natalia disse...

finalmente, a história que ouvi umas 23 vezes...

CLAP! CLAP! CLAP! \o/

ficou ótima!

semudei disse...

Boa, Lulão!

Rachei o bico imaginando o italiano "falando" ingles.

E quando tá marcada a sua volta, hein?

abração

Ps: como diria o Chico, a coisa aqui tá preta.

Anônimo disse...

BOA FERNANDO MORRI DE RI
BEIJOS
SÓ PODIA SER MEU SOBRINHO GENTE.....
TIA SILVIA

Fecespedes disse...

Vish, volta? Só Deus sabe, menino...Depende de uns 458 fatores que estao pra se resolver. Digamos que, nao pior das hipóteses 30 de Abril, na melhor, 11 de agosto.

E vc? Tomou vergonha na cara ou ainda tá tentando ser redator? Como anda a gloriosa auri-roxa sem a minha pessoa? Manda email ai...

Anônimo disse...

tomando carona na última resposta:
por que não ao contrário em ????
dona helena

Anônimo disse...

vai ter facilidade para escrever lá na minha casa. Adorei.
dona helena orgulhosa do pimpolho......

Anônimo disse...

Pô Lulão... e nao é q os italianos falam em inglês assim mesmo?? Trabalhei com vários... hilário... unforgettable!! Bjao!